GRANDEZA E DECADENCIA DA SERRA-ACIMA.

JOSÉ DE MESQUITA (Do Instituto Histórico de Mato Grosso) GRANDEZA E DECADÊNCIA DA SERRA-ACIMA 

Cuiabá Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso Anos XII e XIV Números XXVII a XXVIII 1931 e 1932 JOSÉ DE MESQUITA 2 

José Barnabé de Mesquita (*10/03/1892 †22/06/1961) Cuiabá - Mato Grosso Biblioteca Virtual José de Mesquita

Ao meu venerando amigo coronel Pedro Celestino I Quem quer que se proponha a estudar, á luz dos methodos contemporâneos, a evolução racial e o desenvolvimento social cuiabano, ou melhor do homem do norte de Matto-Grosso, de que somos hoje representantes, força lhe será deter-se ante uma figura typica, que marca, por assim dizer, um estagio da nossa civilização: o “senhor de engenho” da Serra-Acima. Posto não constituía uma criação isolada do nosso meio, pois que se enquadra nos moldes dos seus similares, sobretudo do Nordeste, magnificamente estudados por Gilberto Freyre (1), o “senhor do engenho” mattogrossense possue características suas, muito próprias, que as influencias mesológicas vincaram profunda e indelevelmente dos seus sulcos inconfundíveis. Percorrendo-se hoje, ao passo ronceiro dos animaes de sella ou ao leve deslizar dos autos ligeiros, essa zona deserta e merencória que as “taperas” pontilham, aqui e acolá, dos seus vultos espectraes e silentes, o viajante sentirá perpassar-lhe pelo espírito o eco amortecido da vida de outros tempos e a dolorida repercussão de um assado estuante de animação e de riqueza, de pompas e esplendor, que, por cerca de um século, encheu de seus rumores essa região hoje entregue á paz desolada da morte ou esquecimento.

Vestígios, a cada passo, da opulência de antanho, nos acodem ás vistas: nos sobradões em ruína, que desapparecem, entre o mato que lhes encobre o terreiro, grimpalhes pelo muro e cáe-lhes do tecto, em extranhos cortinados de parasitas; nos “engenhos” parados, alguns reduzidos ás “certidões” de pedra, pittoresca maneira por que lhes dão a conhecer os alicerces antigos; nas plantações de cafeeiros centenários, brilhando, ao sol planaltino, como a ostentar a sua resistência e vigor; em todo esse conjuncto mágico e sombrio de vida que se foi e teima, obstinada, em subsistir á própria ruína. . . Foi numa excursão desse gênero, vai por uma década, que, armado o pouso rústico, em noite fria de julho, ao pé do “taperão” solitário do engenho de São José, cabeceiras do Rio Manso, me invadiu, obsidente e invencível, o desejo de escrever, algum dia, para os que vierem depois de nós e já nem estes palimpsestos encontrarem — a epopéa da grandeza e decadência da Serra-Acima. Reuni materiais, colligi dados, perquiri paciente e cuidadosamente os archivos, desgastei dias e dias sem desanimo, no rude e benedictino esforço de pedir a um morto que nos falasse de sua vida, e eis que, ao cabo, saem-me estas laudas escriptas ainda mais com o coração do que com o cérebro, norteadas pelo sentimento antes que pela razão, mas onde, seja como for, se encontrará de futuro, algum manadeiro, ínfimo embora, para melhor e completo estudo do assumpto.

É que, em se tratando do passado a que nos ligam ecos de affectividade profunda, quase diria atávica, difficil se torna guiar a penna pelo puro raciocínio, sem se impregnar de um pouco de romantismo. E, como bem exprimiu Afrânio Peixoto, noutra ordem de idéas mas que se casa ao que vai dito: «O romantismo não morreu. Todos os que amam e aspiram neste mundo, são românticos.» II A mais antiga referencia que, em letra de fôrma, se nos depara á Chapada, data de 1727, quer dizer menos de um decennio após ao descobrimento das minas do Subtil. É o capitão João Antonio Cabral Camello que, nas noticias que dá ao Revdo. P. Diogo Soares, allude a «hum único engenho existente no sitio onde chamam a Chapada» (2). Entretanto, Milliet de Saint Adolphe, em seu valioso “Diccionario Geographico, Histórico e Descriptivo do Império de Brasil”, traducção de Caetano Lopes de Moura, (3) assim se refere á povoação serrana, cuja fundação fixa erroneamente em 1735: «Chapada de S. Anna — chamada também por vezes Chapada de Guimarens (sic). A mais antiga de todas as freguezias da província de Matto Grosso, situada na garganta da serra de São Jerônimo, 10 legoas a leste da cidade de Cuiabá.

Um vieiro d’ouro muito abundante que se descobriu em 1735 nestas montanhas fez que a ellas acodissem quase todos os aventureiros derramados pelas margens do Cuiabá. Edificou-se dentro de pouco tempo naqelle lugar uma igreja da invocação de Santa Anna, que gozou das prerogativas de freguezia, primeiro que nenhuma das desta província. Como a mina da serra de São Jerônimo se fosse esgotando uma parte dos seus habitantes se entregarão á agricultura, e fizerão grandíssimos benefícios vendendo por alto preço o producto de suas lavras aos que se occupavão exclusivamente nas minas. Consta esta freguezia de 4.000 habitantes.»

Há evidentemente um engano de Saint Millet quando á fundação da Chapada. Os Chronistas da historia mattogrossense registam em 1735 a descoberta de ouro no ribeirão Sant’Anna, chapada do mesmo nome, no districto de Matto-Grosso (4). A homonymia das localidades — Chapada, Sant’Anna — determinou no espírito daquelle douto diccionarista a confusão, que Francisco Ignácio Ferreira, mais tarde, encampou e tem servido a justificar outros enganos semelhantes (5). A chapada, como povoado, deve a sua origem a aldea de índios fundada pelo 1º Governador, D. Antonio Rolim de Moura Tavares, em 1750, e entregue á direção do padre jesuíta Estevão de Castro. Luiz Pinto pos-lhe, em 1766, o nome de Santa Anna da Chapada de Guimarães, levado pela «mania de lusitanizar o Brasil, que então vigorava» (6). Em 1775 foram mandados para a Missão muitos índios Chiquitos, segundo relata o mesmo Melgaço, que dá a criação da freguezia por alvará de setembro de 1814. Effectivamente traz data de 28 de setembro daquelle anno, o alvará da creação da freguezia, sendo mais antigas do que ella a do Bom Jesus de Cuiabá (1722), a de Matto-Grosso, da SS. Trindade (1733), a de Vila Maria (1799) e a de Diamantino (1811). A missão logo entrou em declínio, com o afastamento do seu director, que o sectarismo pombalino sacrificára. Mas o germe ficou. O povoado veio a tornar-se o centro da vasta zona agrícola, disseminada pelos engenhos e sítios, pelos arredores, num vasto raio de léguas, vindo a ser o grande celleiro da capital. No começo do século XIX, Luis d’Alincourt se referia ao lugar de Guimarães, como sendo aquelle «onde existe o maior numero e melhores engenhos dos Cuyabanos»(7)

E Hercules Florence que por lá andou, no segundo quartel do século passado, allude á igreja a Chapada como «guardadas as proporções, a mais rica de toda a província em ornamentação architectonica e em baixos relevos dourados». (8) Ainda hoje, a quem visite o decadente povoado, impressionarão, sem duvida, as proporções do vasto templo, como que deslocado naquelle villarejo, dando a idéa da sua grandeza extincta, de que é índice expressivo. De como, nos fins do século XVIII, já se desenvolvera a industria dos engenhos na Serra-Acima, temos flagrante depoimento na seguinte estatística de 1796, publicada na serie dos “Documentos Interessantes para a Historia e Costumes de São Paulo”, vol. 44:

ENGENHOS DE ASSUCAR, RAPADURA E MELADO DISTRICTOS Fabricas Fabricas Escravos Grandes Pequenas Vila Maria — 2 9 S. Pedro d’El-Rei 1 11 49 Cocaes 3 8 68 Porto Geral pª baixo 4 7 96 Serra acima — 2 10 Somma 11 38 300

ENGENHOS DE AGUARDENTE E MONJOLOS DE FARINHA DISTRICTOS

Engenhos Monjolos Canadas de Alqueires de Escravos aguardente farinhas Vila Maria 2 — 150 600 59 S. Pedro d’El-Rei 2 2 175 280 42 Cocaes 3 — 24 500 66 Rio abaixo 5 — 240 1.100 95 Rio acima 2 — 180 — 70 Serra acima 20 6 4030 16.400 728 Somma 34 6 5015 18.880 1.060 (8) Ver. I. H. e G. B., XXXVII

Como se vê, só o districto de Serra-Acima possuía, em escravos e empregados nos engenhos de aguardente, mais do dobro do total dos outros districtos, sendo a sua produção de aguardente e farinha igualmente superior, em avantajadas proporções, á producção global das demais zonas. Tão prospera era a industria que, em 1799, a Metrópole tributou os engenhos de aguardente com um imposto de ½ oitava de ouro, para occorrer ás despesas com os estudantes mattogrossenses enviados a Portugal, a fim de continuar os seus estudos, aos quaes fixou uma pensão annual de 110§000 (9).

III

Uma estatística dos engenhos da Serra-Acima, obedecendo quanto possível á ordem chronologica, fôra trabalho de grande alcance para a reconstituição da Phase áurea, que foi, para essa região, a primeira metade do século XIX. Tentou-a, em ligeiro e interessante estudo, dedicado investigador do nosso passado Prof. Antonio Fernandes de Souza, auxiliado segundo declara, pelas informações do major Paula Correa (10). Mas a menção ali feita de 49 engenhos não contem referencia alguma chronológica, que lhes permita estabelecer a maior ou menor antiguidade, alem de trazer repetições, com differentes nomes dos proprietários, dos mesmos engenhos, como Burity, Rio da Casca, Gloria, Santo Antonio (mencionado três vezes, duas como da Fartura), Quilombo etc.

Com os elementos que me ensejou o archivo ecclesiástico, procurei organizar um censo dos engenhos mais antigos, cuja existência já se assignala nos fins do século XVIII e começos do XIX. São elles os do sargento-mór Antonio da Silva Albuquerque (São Francisco Xavier), de José Álvares dos Santos, (Santo Antonio da Serra), de D. Maria Rodrigues Vilamendes, de D. Maria Theresa de Jesus, viúva de Francisco Corrêa da Costa, (Bom Jardim), de Paulo da Silva Coelho (Santo Antonio das Palmeiras da Lagoinha de Baixo), de Thomaz Felix de Aquino, (Itambé), do capitão-mór José Corrêa dos Anjos, (Quilombo), do cap. Antonio Leite do Amaral Coutinho, do sargento-mór Antonio Joaquim Moreira Serra, (Santo Antonio da Serra), de Valentim Martins da Cruz, de Manoel Rodrigues Tavares (São Romão), de Domingos José de Azevedo (Quilombo), de Joaquim da Silva Prado, (Burity), de João Baptista Ribeiro, (Santa Bárbara), de José Soares de Barros (no Rio da Casca).

De 1820 em diante vamos encontrando referencias a outros engenhos, como sejam, os de José de Sampaio (Itacolomy), de Jeronymo Gomes Monteiro (Baguassú), vendido em 1835 a D. Maria Teresa Guimarães e Silva (11), de Manoel Pereira da Silva Coelho (Abrilongo), de João Manoel Fernandes da Rocha, de Victoriano José do Couto, do Bom Successo, de Francisco Vieira de Azevedo (Nossa Senhora do Carmo), do P. Antonio Tavares Corrêa da Silva, da Água Fria, de José de Lara Pinto (Campo Alegre, da Bigorna, do São José, de Santo Antonio do Monte Alegre, da Ponte Alta, de João Fernandes de Mello (do Gloria), de Paulo Luis Barata (Barroca) e outros. Obedecendo ao espírito religioso do tempo, cada engenho tinha seu orago a que se consagrava a capelinha, erigida sempre ao lado da fabrica e da “casa grande”, dominando a senzala e as plantações.

Quando o nome do padroeiro não constituía a própria denominação do estabelecimento — S. Romão, S. Bárbara — vinha anteposto á designativa do local — S. Antonio das Palmeiras, S. João do Rio da Casca. Succedida, às vezes, viver mais de um engenho com egual denominação, oriunda da sua situação á margem do mesmo rio ou junto da mesma serra. Distinguiam-se, então, pelos seus proprietários, ou por differenciações topographicas: Rio da Casca, dos Corres ou dos Borges, Lagoinha, de Cima ou de Baixo.

IV

Já em 1780 a Chapada constituía um apreciável núcleo de população, com vários engenhos em roda, quando o juiz de fora doutor José Carlos Pereira, em visita á Missão de Sant’Anna do sacramento, erigiu o templo que o chronista dos Annaes qualifica «huma famosa Igreja, coberta de telha, rebocada e cayada, com capella mor, sachristia e caza para o Parocho» (12). A lavoura se desenvolvera, não só a da canna de assucar, empregada no fabrico de aguardente, assucar, rapadura, mas a dos cereaes, e sobretudo a do feijão e milho. A criação de porcos — assignalada por Hercules Florence, nos começos do século XIX — era também grande. O braço escravo constituía o elemento básico do trabalho. No recenseamento de 1829 apareceram vários senhores de engenhos, com menção de «morada no seu sitio da Chapada» e referência á escravatura, orçando algumas vezes por mais de 50.

Florence, o chronista da expedição Langsdorff, em 1827, nos traça dois curiosos painéis da vida dos “engenhos” na sua fase áurea — do Burity e do Quilombo. Neste ultimo, houve mineração, e animada. Alem de Florence, que relata o caso do achado de um diamante de 6.000 gs., o minudente Luis d’Alincourt, na sua Estatística, diz: «No rio Quilombo, da serra da Chapada, aproveitão alguns mineiros bons jornaes» (13). A leitura da curiosa memória do sábio, cuja vida Bourroul esmiuçou, permitte-nos esboçar a largos traços, o ambiente de um “engenho” serrano, no primeiro quartel do século passado, que foi precisamente o seu período de explendor.

O “engenho”, propriamente dito, compunha-se da fabrica, com os seus compartimentos accessorios, alem do monjolo, o moinho de fubá, as tulhas e o paiol. Os “engenhos” mais importantes tinham olaria e alguns até serraria, para o apparelhamento de madeiras. Ao lado da fabrica e capella, a “casa grande”, vasta e patriarchal, com seus cômodos enormes, para abrigar as famílias quase sempre numerosas que se reuniam nas occasiões das festas religiosas, dos aniversários ou no começo da safra, sempre commemorando. Havia os compartimentos especialmente destinados aos hospedes, no que alias, se observava à boa praxe da hospitalidade brasileira e em parte, o prudente conselho de Antonil, que, no começo do século de setecentos, inculcava aos senhores de engenhos: «Ter casa separada para os hospedes, he grande acerto; porque melhor se recebem e com menor estorvo da família, e sem prejuízo do recolhimento, que hão de guardar as mulheres e as filhas, e moças do serviço interior occupadas no apparelho do jantar e da ceia» (14). Ressuscita-se o ambiente austero das velhas casas brasileiras, com sua mobília pesada, de jacarandá, suas caixas e arcas enormes, de couro tauxiado, ou de madeira, os oratórios, a baixella prata, a louçaria, as «camas de vento», as commodas de Castella com gavetas marchetadas, os candelabros de prata velha para o salão e os candieiros de cobre, para o terreiro, o nos dias de «batuque», — e tudo, enfim, que compunha e integrava um estagio social que já desappareceu inteiramente. As viagens eram feitas nos bangues, carregados por possantes escravos “minas” ou “congos”, sendo pouco usada a “cadeirinha”, de que sobre-existe, entretanto, um specimem único, digno de ser decantado por um outro Affonso Arinos, em poder do caprichoso antiquário dr. Euphrasio Cunha.

Vinham sempre os “senhores de engenho” passar na cidade as “festas” da Semana-Santa e do Bom Jesus, coincidindo o inicio da moagem com o fim da primeira daquellas festas (quasi sempre Abril ou Maio) e o termino do serviço do engenho com a aproximação do Natal e Anno Bom. Estacionavam, dest’arte, na cidade, justamente no período das “águas”, o rigor da estação chuvosa, em que o trabalho paralysava nos “engenhos” e, de resto, a vida, confinada ao trato da lavoura, dispensava boa parte dos escravos e aggregados.

V

A importância que, no seu período de esplendor, chegou a ganhar a zona serrana, afere-se, por um lado, através da sua situação de grande empório da Capital, como productora de gêneros de primeira necessidade e, por outro, pelo relevante papel desempenhado em nossa vida politica e social pelos grandes proprietários e “senhores de engenho” da Serra-Acima. Sem chegarem áquella phase em que «o domínio rural é omniproductivo» e na qual aos donos de engenhos foi licito dizer «nesta casa só se compram ferro, sal, pólvora e chumbo» (15), os “engenhos” cuyabanos da Serra-Acima attingiram elevado grau de desenvolvimento e alguns delles podiam ser apontados como estabelecimentos modelares, de accordo com o que o progresso contemporâneo facultava á actividade. Apezar de ser quase todo o trabalho feito pelo braço escravo, que era a única e verdadeira machina agrícola do tempo, grande e notável foi à vida desses estabelecimentos.

Moutinho que, em 1868, visitou um engenho, o das Palmeiras, pertencente ao capitão José Leite Pereira Gomes, assim se refere ao que ali observára: «A plantação consiste, como em todos os outros de serra-acima, em feijão, canna, arroz, milho, etc., mais o rendimento maior é o produzido pela venda de aguardente, que tem um consumo extraordinário na província, razão do seu preço elevado, de que já falamos em um dos capítulos deste livro. O assucar também ali se fabrica, e de boa qualidade. As moendas que servem para a moagem da canna são, na maior parte dos sítios, feitas de madeiras, com varões puchados por mulas ou bois, que, no sitio de que tratamos, são substituídos por grande roda movida por água. Quanto á farinha é feita, como sempre, por meio de monjolo ou moinho. A aguardente é enviada ao mercado em barris feitos de pau de combarú, compondo-se apenas de duas aduelas solidamente ligadas por arcos de ferro, contendo cada um canada e meia de liquido (16).

De par com as culturas mencionadas pelo auctor da “Noticia sobre a Província de Matto Grosso”, floresceu, na Serra-Acima, a do café, que se aclima perfeitamente no altiplano mattogrossense. Em seu precioso livrinho “A estrada de ferro para Matto-Grosso”, o dr. Antonio Gonçalves e Carvalho assim se referia, em Maio de 1875, a respeito: «Dissemos que todos os districtos da Província em geral produzem o café. Em particular, a Chapada (o grypho é nosso) orgulha-se de sua aptidão para essa proveitosa cultura.

Ahi os cafeeiros crescem até acima de três metros, dão regularmente mais de dez libras de producto e não raro uma arroba. Ainda existem os primeiros pés plantados em tão fértil solo: velhos, quanto á edade, de mais de meio século de existência, perdidos alguns no meio do matto que ao redor se desenvolveu, expostos ao estrago dos animaes, ostentam o mesmo vigor antigo, florescem e frutificam sempre» (17). Nesse mesmo interessante ensaio, allude o grande amigo de MattoGrosso ao plantio da batata ingleza «que se aclimatou na Chapada», e diz, como prevendo possíveis objecções ás suas assertivas: «Que não ha exageração no que escrevemos, maximé no tocante ao districto da Chapada (é nosso o itálico), dará fidedigno testemunho a Commissão de engenheiros, que ora se occupa com os estudos da via-férrea desta capital para esse districto.» É ainda esse instructivo opúsculo que nos dá conta, em se referindo á riqueza de Matto-Grosso em madeiras de construcção, de «que o finado commendador João José de Siqueira, cidadão amante do progresso da sua terra e que importantes noticias nos deu sobre ella, offereceu na épocha da administração do também finado conselheiro Ferreira Penna, para figurarem na Exposição Nacional de 1864, assenta bellas amostras de differentes madeiras, tiradas do districto da Chapada, que lá foram devidamente apreciadas» (18). Não constituem um depoimento isolado e sem eco as palavras com que se refere á Chapada o “poeta da Flor de Neve”.

A Commissão Calaça, como ficou sendo conhecida, do nome do seu chefe Dr. José Gomes Calaça, em relatório de 1876, — é justamente aquella a que se refere o dr. Carvalho — assim se exprimiu acerca do districto chapadense, que estudou minuciosamente: «Nos subúrbios da Chapada, que, como já fiz ver se acha num dos pontos mais elevados da serra, existem as melhores plantações de café da província; ahi a fertilidade torna maravilhosa, e o café produz com tal abundancia, que pessoas do lugar, merecedoras de toda a confiança, asseveram-me que, em um dos annos passados, em um só pé, colheu perto de uma arroba. Tive occasião de ver cafeeiros com mais de três metros de altura, dando ainda fructos, e que disseram-me ter mais de trinta annos» (19). Pimenta Bueno (F. A.) que, pouco depois, em 1879, percorreu parte de Matto-Grosso, no desempenho de importante Commissão do Ministério da Agricultura, corrobora dest’arte com sua autoridade os conceitos anteriores: «No districto da Chapada e na serra de São Lourenço as terras são bastante férteis: o café produz perfeitamente nessas alturas e também outros gêneros de cultura que se pode obter nas demais províncias do Império . . .» (20).

Em 1876, — pouco antes de por ali passar o engenheiro illustre, filho do marquez de São Vicente, também ligado á nossa Historia — colhiase, no Bomfim, sitio de José de Lara Pinto, a primeira partida de café destinada á venda no mercado publico de Cuyabá. Quem nol-o conta é o douto ephemerista Estevão de Mendonça, que, ao depois de relatar o acolhimento favorável que teve o producto serrano, enviado, em amostra, para Londres, conclue: «A cultura do cafeeiro, porem, apesar da assombrosa fertilidade das terras do districto da Chapada, encontra-se quasi extinta neste Estado» (21). VI A hegemonia da chapada, como empório agrícola e industrial do Norte, vinha de longa data, e manteve-se durante o período de um século, aproximadamente. A vida do campo estava confinada a estas duas actividades que se completavam e se integravam: a cultura da terra e o fabrico dos productos e sub-productos da canna de assucar. A esse estagio social «vincularam-se — como bem accentua o moderno ensaísta Azevedo Amaral — a escravidão e o predomínio social e político dos proprietários territoriaes, que imprimiam cunho tão peculiar á vida do paiz» (22). Circumscripta a actividade rural aos engenhos, engenhocas ou “fabricas”, espalhados pelos arredores das cidades ou villas, bem é de ver-se que uma feição particular caracterizaria esse período, matizando o ambiente social e político da época de suas tintas inconfundíveis.

Alfredo Brandão, citado pelo douto Professor Bernardino de Souza, na “Onomástica Geral da Geographia Brasileira”, nos dá, em um livro valiosíssimo, curiosa pintura da vida do engenho no Norte, offerecendo similitude, em vários pontos, com a dos nossos engenhos da Serra (23). Diversos eram os systemas de uso na província — desde as moendas pequenas ou escaroçadores, com alambiques «que formavam de tachos», os engenhos a boi (parece não ter sido usado o cavallo como instrumento de tracção, a exemplo de outras zonas) até o “engenho d’água”, que representava o maior grão de progresso no gênero (24), predecessor do engenho a vapor e das usinas de hoje. A quem se deve attribuir a primazia do cultivo e exploração da canna de assucar na Serra-Acima ? Virgilio Corrêa Filho confere ao brigadeiro Antonio de Almeida Lara a gloriosa dessa iniciativa (25).

Effectivamente, parece haver sido o grande sertanista o introductor da canna em Cuyabá, segundo o affirma o tosco rhapsodo das nossas primeiras eras, Barbosa de Sá, quando, na Relação dos Povoados, narra, nas aphemerides do anno de 1728, que Lara, após a partida do capitão-general Rodrigo César, preparou «duas canoas de guerra, com outras de montaria, com escravos seus e alguns homens brancos, todos com boas armas, e fazendo isto á sua custa os enviou a procurar as canas, com que fez o brigadeiro um bom quartel . . .» João Severiano que reproduz, em nota, esse tópico do primeiro chronista cuyabano, presume ser a canna indígena da província, pelo facto de, pouco antes, o mesmo Sá se referir á existência della «pelos serões das vargens da habitação dos Guatoz, Xacoéres e outras» (26).

Não há, entretanto, fonte segura que auctorize crer a tenha sido Lara o introductor da canna de assucar na Chapada, comquanto o próprio monographista das “Notas á margem”, em uma das suas preciosas annotações ás Chronicas do Cuiabá assevere haver Lara tido a Chapada por fazenda sua (27). V. Corrêa Filho deve ter-se baseado para fazer tal asserto nos linhagistas Pedro Tasques e Silva Leme, segundo os quaes o filho de João Raposo, figura de alta relevância nas gestas de nossa Historia, possuíra uma «fazenda assaz populosa» na Chapada (28).

Seria porem, na Chapada cuyabana, que, ao depois, veio a chamar-se de Guimarens ou na de Matto-Grosso, de fallaz homonymia, por ser também de Sant’Anna, que levou Saint-Milliet a um deplorável engano, como já verificamos no inicio deste ensaio ?

Não vejo elementos que induzam a uma affirmativa assaz clara e fora de duvida. Por um lado, temos a presunção de se tratar da Chapada de Leste, por que os ANNAES de Cuyabá contam que o ouvidor Lanhas se fora «com o brigadeiro Antonio de Almeida (Lara) para a chapada, por onde andou alguns tempoz em descobrimentoz de ouro e cassando perdizes» (29).

Por outro, entretanto, força é convir que Lara andou também pela chapada de Oeste, e a essa circumstancia allude o chronista de Villa Bella, Nogueira Coelho, nas ephemerides do anno 1736 (30). É para notado ainda o facto de não constar na relação das sesmarias concedidas em Matto-Grosso, nos annos de 1726 e seguintes, nenhuma de nome Chapada do Tte. Cel. Almeida Lara, cujo nome, alias, figura naquela valiosa separata do vol. XXVI da Revista I. H. e G. de São Paulo. Três sesmarias foram concedidas, com a denominação de Chapada, uma ao ouvidor Lanhas Peixoto, a 27 de Novembro, outra a Gervásio Leite Rabelo, a 9 e outra ainda a Plácido de Moraes, a 12 de Dezembro de 1726, sendo que a segunda foi declarada sem effeito, por ser o concessionário Secretario do Governador, o que diz bem alto da moralidade administrativas dessas eras distantes e tão caluniadas (31).

Lara, o grande sertanista, que desempenhou na phase colonial, quando nem siquer Capitania independente era Matto-Grosso, um papel de extraordinária saliência, bem pode não ter sido o primeiro introductor da canna na Chapada, o patriarcha da incipiente industria sacharifera que tanto dinheiro canalizou para essa zona previlegiada da Serra-Acima, hoje entregue, com rara excepção, ao abandono e ao indifferentismo das administrações republicanas. Certo, porem, é que a elle se deve a precedência sobre qualquer outro plantio da canna no Norte de MattoGrosso. E isto só já lhe confere direito incontestável á gratidão dos posteros e ao culto dos que aprenderam a ler, nos pergaminhos do Passado, os actos dignos e nobres dos bem feitores da humanidade (32).

Antonio de Almeida Lara, Brigadeiro e sargento-mór das Minas do Cuiabá, descendia pelos 4 costados de illustres bandeirantes. Faleceu em Cuiabá, em 1742, sendo nesse mesmo anno inventariado, não em 1750, como por equivoco, affirma na nota referida V. Corrêa Filho.

VII

Os índices demographicos da Chapada, comquanto falhos e calcados em documentos truncados e muitas vezes deficientes, permittem esboçar, em linhas geraes, o diagrama evolutivo da zona que faz objecto deste ensaio. O districto de Serra-Acima, que teve sua origem na missão da Aldeia Velha, em 1750, desenvolveu-se lentamente, através de crises de varias espécies, attingindo a phases de relativo progresso, como as que marcam o decennio de 1820 a 1830 e o inicio do terceiro quartel do século XIX.

Dos livros de assentamentos relativos á freguezia de Sant’Anna do Sacramento, que sobreexistem no archivo ecclesiástico, pude colligir dados estatísticos que auctorizam a crer haja sido o período mediante entre 1850 e 1865 o do explendor e grandeza da Serra-Acima. Paciente trabalho de pesquiza nesses velhos códices, datantes os mais antigos do século XVIII — o livro 1º de casamentos é de 1798 — levaram-me a concluir com segurança que a Chapada teve nesse período o seu maior florescimento. O numero de baptismos que, na década 1820-130, oscilara entre o mínimo de 6 (1830), e o maximo de 28 (1829), para descer na seguinte até 1 (em 1833), e na de 1840-1850 conservar-se entre 8 (em 1846) e 24 (em 1841), eleva-se, a partir de 1854, aos seguintes algarismos significativos: 1854 – 50; 1855 – 49; 1856 – 43; 1857 – 38; 1858 – 22; 1859 – 58; 1860 – 31; 1861 – 34; 1862 – 54; 1863 – 36; 1864 – 24; 1865 – 40 e 1866 – 43. Os óbitos, por outro lado, que em 1827, não ultrapassavam de 12 e na década de 1840 andavam entre 4 (1842) e 6 (1844), attingem em 1855 a 15, subindo progressivamente a 17, em 1856, 24, em 1859, 27 em 1863, 30 em 1865 e 32 em 1866, com curvas de pequena depressão nos annos intermediários. Quanto aos casamentos, offerece-nos o cotejo entre o primeiro e terceiro quartel do século passado estas cifras expressivas — maximo em 1803, com 28 casamentos, sendo 12 de escravos e mínimo em 1804, com 6, dos quaes 4 de escravos (seria por ser o anno bissexto ?); — 1810 a 1820: maximo em 1811, com 17, 6 dos quaes de captivos e mínimo em 1813 e 1819, com 8 cada anno, sendo no primeiro 6 de livres e 2 de escravos e no segundo 5 de livres e 3 de escravos; — 1820 a 1830: maximo em 1824, com 25 casamentos e mínimo em 1830, com 2 apenas; de 1854 a 1866 com estes números: 1854 – 3; 1855 – 6; 1856 – 4; 1857 – 10; 1858 – 11, 1859 – 7; 1860 – 6; 1861 – 3; 1862 – 4; 1863 – 4; 1864 – 4; 1865 – 6 e 1866 – 2.

É preciso notar, quanto aos casamentos, que certo desequilíbrio que se verifica na progressão vai á conta da circunstancia de muitos enlaces, sobretudo da fidalguia rural, se fazerem na cidade, o que se não dá, pelo menos com a mesma proporção, a respeito dos nascimentos e óbitos. Esses elementos se aliam e completam si os considerarmos tendo em vista outras fontes informativas, como, por exemplo, relatórios da presidência da província, entre outros o do Barão de Melgaço, datado de 3 de maio de 1852, que dá para a freguesia da chapada 136 votantes, quota bastante avultada e indicativa da vida e animação daquella zona rural. Já em 1869 — depois da “varíola” que devastou a província (33) e no fim quasi da “guerra do Lopez”, um recenseamento feito pelo bispo D. José e mencionado por Moutinho arrolava 350 fogos, dentro do povoado, com 1600 moradores, 900 dos quaes escravos. Trez annos após, o censo de 1872 accusava um total de 2611 habitantes em toda a Serra-Acima, assim distribuídos: homens — 1358, dos quaes 416 escravos e mulheres — 1253, das quaes 328 escravas. Pimenta Bueno, no seu trabalho já citado, dá, em 1879, um total de 2165 habitantes para o districto da Chapada, sendo 1092 do sexo masculino e 1073, do feminino, o que, mesmo representando uma linha decrescente, em relação ás cifras anteriores, ainda collocava a Serra-Acima em nível demographico, superior a Diamantino e Villa Bella e pouco inferior a Poconé e Guia (34). É, por sem duvida, a edade áurea da Serra-Acima, o seu período de esplendor, a assignalada década e meia que vai de 1850 a 1865, aproximadamente. Os engenhos prosperam francamente. A introducção de escravos avoluma-se. Novas estradas se abrem, rasgando, aqui e ali, fraldas escarpas e as penedias do grande massiço central. É a velha Bocaina que o commendador João José de Siqueira, senhor do “Burity”, adapta ao trafego, melhorando-lhe as condições de actividade no “Pega-mão” e no “Tope de Fita”; são as outras vias de penetração e acesso, desde a do “Capitão Agostinho”, na extrema sulina da Serra até a do “Quebra-Gamella” a mais septentrional, passando pela de “Manoel Antonio”, do “Xavier”, da “Ruça” (35) e do “Magessi”. Expande-se o domínio rural dos “senhores de engenho”, numa penetração ousada, devastando sertões, levando as suas posses, numa arrancada heróica, pelo planalto a dentro, num raio de dez e mais léguas, cujo ponto de apoio e centro de irradiação ficou sendo o antigo arraial e aldeia missionária, já então convertida em povoação de Sant’Anna da Chapada, centro nuclear da vida, da industria e da lavoura de toda a Serra-Acima. Fácil se torna enquadrar o phenomeno histórico do esplendor da Chapada, no período alludido, dentro da própria evolução politica da Província e do Império de que esta fazia parte. Matto-Grosso, refeito das borrascas jacobinas em que estourara, como preia-mar irreprimível, o motim sangrento de 1834, tinha entrado, justamente ao abrir-se a segunda metade do século XIX, numa phase de acalmia e serenidade, de trabalho e de paz, synthetizada na politica moderada de um presidente como Leverger e na acção constructora de um Delamare, de um Albino de Carvalho e de um Couto de Magalhães.

Essa situação manteve-se, inalterada, até o deflagrar de novos flagellos, como a guerra, em 1864, e a varíola, em 1867. Fica assim esse período, entre 1850 e 1865, como um parenthesis de bonança, na vida tormentosa da infeliz província, quasi sempre abandonada dos poderes centraes, e ainda hoje entregue á sua própria sorte nas mais duras e árduas vicissitudes. Si volvermos, por outro lado, a vista para o quadro geral da situação brasileira, certo nos convenceremos, sem dificuldade, de que o país atravessava, nesse período, uma dessas quadras de lento labor reconstructivo, com o advento do segundo reinado, inaugurada a chamada “politica de conciliação” do marquez de Paraná, fechado o cyclo das guerras intestinas, a ultima das quaes, a “revolução praieira”, tivera justamente o seu remate em 1849. Abria-se para a nação aquella «época de renascimento, de expansão, de recomeço, em que se renovou o antigo systema político decrépito, em que se creou o apparelho moderno de governo, e se dilatou extensivamente, não para a classe politica somente, para todas as classes, o horizonte que as comprimia» (36). Era, pois, o Brasil, a província, o districto da Serra-Acima, num rythmo uníssono, caminhando, a passadas seguras, para o progresso, na paz tranquilla em que se arrima o trabalho, se esteia a producção e se consolidam as finanças. Phase de auspiciosas esperanças, mas, infelizmente, ephemera, pois não tardaria a estalar, como um raio em noite serena, a guerra externa, de que Matto-Grosso seria uma das primeiras victimas e, como sempre, das mais sacrificadas. (36) Joaquim Nabuco — Um estadista do Império, I, 176. JOSÉ DE MESQUITA 18 VIII 1867 marca para o prospero districto da Serra-Acima o inicio fatídico da sua decadência. Já três annos antes o fantasma aterrador da guerra ermara sítios e engenhos, desorganizando profundamente o trabalho rural. Sobre um flagello — o da guerra — outro viera, mais cego e virulento na força inconsciente da sua expansão — a peste. A extensão e intensidade do surto epidêmico das “bexigas” na zona Norte da província são assaz conhecidas. Não havia poupar-se na lúgubre tragédia, que enluctou talvez 90% dos lares cuyabanos, a florescente povoação Planaltina. A esses revezes, outros viriam accrescentar-se, conjugados mallignamente na tarefa de precipitar o declínio da formosa região serrana. Entre os factores precípuos da decadência da Serra-Acima um avulta, que escapou á perspicácia do nosso historiographo V. Corrêa Filho quando em seu “Matto-Grosso”, obra de cabeceira para quantos se dediquem aos estudos das cousas de nossa terra — apontou como causa única do degresso da Chapada «a extinção do braço escravo, que apparentemente compensava, pela sua barateza, as difficuldades de transportes, serra acima» (37). Referimo-nos ás incursões dos índios, cujos ataques, sobretudo no decennio anterior a 1880, chegaram quase ás portas da própria Chapada. Documentos coevos nos auctorizam a reconstituir o ambiente de terror criado por essas aggressões freqüentes, de dramático desfecho muitas vezes. A abolição veiu apenas desferir o gole de misericórdia, accelerar o collapso, que uma lenta agonia de cerca de 12 annos vinha processando. Como é sabido e familiar a quem se dedique á investigação do nosso passado, data de 1886, no governo de Galdino Pimentel, a primeira tentativa bem organizada de catechese dos coroados que infestavam o altiplano, desde as cercanias da Chapada até o alto sertão, constituindo-se temível perigo para os viajantes e tropas que demandavam o Rio Grande (hoje Registro do Araguaya), a caminho da Corte. A situação anterior fica delineada em synthese expressiva nas seguintes palavras de João Augusto Caldas, que, em interessante e pouco divulgada monographia, se occupou do assumpto: «Começaram com freqüentes correrias em represália; e foi tal a ousadia com que as praticavam que não escapou dellas os sítios mais próximos da capital. O desanimo foi geral: lavradores houve que perderam a família toda; seus bens não tinham segurança; suas casas eram incendiadas; tudo abandonavam e iam procurar abrigo nos lugares povoados» (38).

De longa data vinham as depredações dos selvagens na região Planaltina, podendo-se dizer que ellas foram assumindo, num crescendo espantoso, proporções taes que se constituíram, alfim, verdadeiro terror e angustia permanente para os habitantes da zona. Já em 1857, o “Noticiador Cuiabano” assim se exprimia com relação ao assumpto: «Apezar dessa fertilidade, a lavoura definha consideravelmente. As fabricas desapparecem e o excessivo preço dos escravos é uma barreira aos que pretendem estabelecimentos agrícolas. Por uma parte as hordas selvagens que em pilhagem accometem os lavradores destituídos de forças e recursos de afugental-os para o interior das matas, destruindo as roças — incendiando os prédios, matando os escravos e trabalhadores . . . (39). O mesmo jornal, dois annos após, aludia, em seu artigo de fundo “A actualidade”, ás “fabricas” «cercadas de indígenas, que acomettem a vida dos escravos (hoje tão caros) e a dos proprietários e suas famílias sujeitos ao excessivo preço das bestas, únicos vehiculos de conducção, e nestes últimos tempos tão extraordinariamente conducentes a prejudicar os fazendeiros, em razão da peste cadeira, que açouta tudo, tudo desacoroçoa» 40). Aponta a referida folha ainda, como concousas do esmorecimento da vida rural na Serra-Acima, a aggravação dos impostos e o pavor do recrutamento aberto, que determinavam «receios dos camaradas em descerem dos sítios», adiantando que a presidência ordenara á policia fizesse «soltar immediatamente toda pessoa, que for presa para recruta, uma vez que tenha vindo em canoa ou com carregamento de gêneros alimentícios» (41). A Situação vai se engravecendo a partir de 1866, com o êxodo occasionado pela guerra e pela varíola, rarificando os núcleos de população campesina e tornando, des’arte, menos efficaz a resistência e, conseqüentemente, mais amiudados e ousados os assaltos. Em 1879 o presidente João José Pedrosa no seu relatório á Assembléa diz haver-lhe officiado, a 4 de fevereiro desse anno, o chefe de policia «participando que os índios, em numero de 200 a 300, aproximavão-se da freguesia da Chapada» e, pouco adiante, transcreve um outro officio da mesma autoridade, que era então o dr. Milciades Augusto de Azevedo Pedra, em que se lêem as seguintes palavras bastante expressivas para memorar o estado da zona sacrificada: «Com especialidade a Comarca desta Capital, a mais populosa e rica, é a que tem sido e continua a ser a mais vexada; porquanto quasi a um só tempo tem sido assaltada, pelo norte — na Chapada — pelo nascente — no Aricá — e pelo poente — na Guia, — de modo que quasi podemos dizer que nos achamos em estado de sitio» (42). É ainda o mesmo dr. Pedra que, no officio referido, narra um ataque dos índios no lugar chamado “Soberbo”, a 15 léguas da Capital, sendo mortas 8 pessoas e allude a uma communicação do sub-delegado da Chapada de haver mais «17 victimas a lamentar, inclusive uma gravemente ferida.» “O Povo”, de José Maria Velasco, ainda nesse anno de 1879, noticia, em correspondência da Chapada, que os índios coroados se achavam «estacionados em grande numero nas immediações dessa Freguezia cujos habitantes ameaçavam», tendo chegado a aggredir o dono do engenho “Abrilongo”, Francisco Correa da Costa (43). Pouco depois de 1881, já na década abolicionista, “A Província de Matto Grosso” dá conta das medidas tomadas pelo Governo abrindo um credito de 25:000§000 para a organização de uma força de 50 homens, sob commando de Generoso Alves Correa, senhor do engenho do “Rio da Casca”, «pata bater as partidas e ir até as malocas dos selvagens com o mesmo fim» (44). Pouco após, em 1882, lemos n’”A locomotiva”, numa curiosa descripção das “festas da Chapada”, este tópico indicativo do estado de animo reinante: «E ao passo que a população rarêa procurando abrigar-se nos centros populosos, affugentadas pelos aborígines que infestão as suas paragens, onde fazem constantemente os mais hediondos morticínios, enfraquecendo assim a lavoura, — a Igreja campeia altiva e sombranceira no centro daquela planície immensa . . .»

(45). “A Brisa”, em 1884, dizendo que «não ha lugar algum da serra acima e será abaixo, até as adjacências desta cidade, que não tenha sido atacado!» (46) e “O Expectador”, em 1886, fazendo no seu editorial, “Os Selvagens” doloroso e flagrante appello ao governador sobre alarmante situação criada pelas «incessantes correrias dos selvagens, cuja ousadia recrudesce e assume proporções assustadoras» (47) — são tantos depoimentos fidedignos a nos convencer da deplorável situação daquella época, que a expedição Duarte veiu attenuar, posto não a solucionasse de todo em todo.

Mais eloqüentes, entretanto, que as noticias dos periódicos locaes, se nos antolham, pela sua fidelidade e precisão, os assentamentos de óbitos da freguezia, nos quaes os vigários, com rara minudencia, inseriam as particularidades que cercavam os fallecimentos. Assim é que, para não alongar de muito este capitulo, citaremos os ataques do “coroados” a 11 de agosto de 1875 no sitio “Olhos d’Água”, matando Manoel Pereira Borges; a 19 do mesmo mês e anno, no “Quilombo”, trucidando a africana Theresa Pereira da Silva e outra escrava de nome Rita; a 27 de janeiro de 1877, na Bocaina, em que foi morto Manoel Victal, filho de Maria Gouveya; a 21 de junho desse anno, nos “Olhos d’Água”, meia légua distante da sede da freguezia, em que pereceram «assassinados barbaramente pelos índios» a referida Maria Gouveya, solteira, de 43 anos, Maria da Conceição, solteira de 14 annos e Manoel do Nascimento, solteiro, de 80 annos; e, finalmente a 18 de abril de 1878, no “engenho do Burity”, sucumbindo a uma flechada, na horta, o escravo Felippe (48).

Souza Lobo, em um interessante livro “São Paulo na Federação” assim se externou, com muita felicidade, acerca da extincção do trabalho servil em nosso país: «A abolição dos escravos foi mais um problema sentido que raciocinado.». Delle é também este incisivo conceito: «Libertos os escravos, o trabalho nacional,de chofre, desabou» (49). Si, em outras zonas, a esse desmoronamento foi, pouco a pouco, se seguindo o trabalho lento de reconstruccão, com elementos extranhos, não assim na província de Matto-Gosso, e sobretudo na região serrana, cujo afastamento, além das condições peculiares da vida, não permittiu a substituição do braço escravo pelo braço livre, que viesse reavivar as industrias e a lavoura feridas de morte com a abolição. A situação da Serra-Acima era, depois da guerra, a que ficou esboçada no ultimo capitulo, de terror, de desanimo, de deperecimento, diante dos assaltos contínuos dos indígenas, das difficuldades de transporte, do aggravamento dos impostos e encarecimento dos escravos e dos animaes de tracção e carga, quando, de súbito, a noticia da lei áurea caiu como uma granada sobre um arraial já quasi deserto, naquella meia-vida a que se reduzira o tumulto e a animação dos velhos “engenhos”. Era a estase final, após dura e prolongada agonia. Percebem-se naquelles rincões solitários, como Euclydes da Cunha visionava no Valle do Parahyba, victima do mesmo phenomeno histórico, «na calada dos ermos, todas as sombras de um povo que morreu, errantes, sobre uma natureza em ruínas» (50).

Colhi, na ultima excursão que fiz pela Chapada, em Dezembro, impressões curiosas acerca do desfecho dramático da campanha abolicionista nas propriedades da Serra-Acima. Engenhos e fabricas houve que se ermaram do dia para a noite, mal apenas a noticia, transmitida por mensageiros interessados, echôou, alvissareiramente, pela planície serrana, como um «hallali» de liberdade e de victoria para os infelizes captivos e, ao mesmo tempo, como o «dies iræ» doloroso para os “senhores” que se viam, de repente, empobrecidos e defraudados no maior acervo dos seus haveres.

No Rio da Casca, “engenho” de Generoso Alves Corrêa, festejava-se o casamento de sua filha Umbelina com João Ludgero de Siqueira, filho do Com. João José de Siqueira (já então fallecido) e um dos condôminos do “Burity”.

Uma festa ruidosa, eis que se tratava da alliança de duas importantes famílias serranas, de “senhores de engenhos”, vale dizer da aristocracia rural da época. Afflluiram á propriedade moradores dos arredores e parentes dos noivos. Era ao inicio da moagem, a época alegre dos “engenhos”, rumorosa e trepidante, que evoca o barulho das rodas d’água, o monótono canto-chão dos monjolos, a cantilena dos escravos no cannavial, que o sol do inverno redoura, e o aroma dulcíssimo do mel, a encher os ares circumdantes de sua deliciosa e ennervante poesia. . . Depois do período de «fogo morto», que é o que vai de Outubro a Abril, em que só a terra trabalha, no lento labor de sua gestação, e o “engenho” dorme, parado e silencioso, á espera da nova “safra”, exsurge, com os primeiros frios da “Santa Cruz”, a vida, a animação, o ruído da moenda, a azafama alegre do trabalho. Era pouco depois do São João e, no terreiro grande,ardiam ainda, no brasido, as fogueiras votivas com que a crença ingênua do povo festeja o Baptista. Estava marcada para 28 de Junho a festa das bodas, já havendo chegado, alem do vigário, o P. João Xavier, as testemunhas, João Augusto de Siqueira e Joaquim Sulpicio de Cerqueira Caldas — irmão e cunhado do noivo — e grande numero de parentes, amigos e vizinhos. No dia marcado celebrou-se, com suggestiva belleza do ritual catholico, o enlace do João e Umbelina. A boda continuava, porem, como de praxe, ainda por alguns dias, até que se retirassem os recémcasados e os convivas. E a alegria, o prazer, a animação reinava ainda no “engenho”, interrompido o labor num parenthesis festivo, entre a sanfona do salão e a viloa rústica do “siriri”, quando, ao longo chiar das rodas cantadeiras, um carro de boi entra pelo terreiro do “engenho”, trazendo noticias da cidade, donde provinha. E, como um raio que estalasse em noite serena, corre numa entremescla de sorpresa, prazer e mágoa, a nova de que «já não havia escravos no Brasil». Comquanto muito intensa andasse na província a campanha redemptora, a abolição immediata e sem restricções sorprehendeu grandemente não só aos senhores de escravos — que viam desapparecer na voragem de um decreto imperial quase toda a sua riqueza, como os próprios captivos, prezas que ficaram de verdadeira desorientação ante a liberdade total e imprevista. No “Rio da Casca” ficaram apenas três escravos. Nem houve prender aos outros com a continuação da festa: foram sahindo, sem mais, num alvoroço de ave que se desengaiola, tonta de luz e ébria da liberdade de voar. Epilogava-se assim, num ambiente de tristeza, aquella festa, entre rumor e risos iniciada.

Testemunha ocular desse evento significativo contou-me que D. Deolinda, esposa do senhor do “Rio da Casca”, chorava, ao ter, de chofre, a noticia. Um desnorteio completo, uma debandada em regra, tumultuária e célere. No “Burity”, quando chegaram os noivos, — que se casaram ricos e accordaram pobres, como num sonho — a mesma desolação, a mesma impressão de abandono. De mais de uma trintena de escravos que existiam no “engenho” dos Siqueiras restava uma meia dúzia, si tanto, de inválidos, que não viam mais preço em ser livres e um ou outro cuja dedicação aos donos se sobrepunha heroicamente ao próprio sentimento nativo de independência. O mesmo quadro, com pequenas variantes, nos demais “engenhos” e sítios. A “Serra-Acima” recebia o ultimo golpe, o ferimento mortal incicatrizável, pelo qual se lhe escoariam as derradeiras energias morrentes. Os escravos, ao envés dos que «fugindo ao captiveiro», no lindo poemeto de Vicente de Carvalho, rumaram ás «collinas azues do Jabaquara», procuravam, procuravam, agora que ninguém os detinha, a baixada propicia, rumo á cidade que os attrahia com vida livre e sem peias, longe da disciplina do trabalho rural a que se viam até pouco manietados. Era um êxodo geral e completo; era o irreparável fracasso da industria assucareira e da lavoura na Chapada, desprovida, dess’arte de braços, sem possibilidade de substituir no momento pelo braço JOSÉ DE MESQUITA 24 livre ou pela machina; era, emfim, o cyclo da decadência que se precipitava num desfecho doloroso, após o lento processus de duas décadas de agonia. Ouvia, entre curioso e commovido, a narração do episodio das núpcias no “Rio da Casca” e, sem que o sentisse, a lembrança me trazia á mente aquelle passo do “Natalia” de Alberto de Oliveira, em que o mágico evocador e colorista de nossa vida rural pinta, em tercetos admiráveis, a debandada dos escravos da fazenda “Esperança”, após o 13 de Maio.

São versos — mas não destoam, por muito verdadeiros no desenho, de um bosquejo histórico, antes como que lhe empresta, com sua delicadeza e gracialidade musical, um encanto que doutra forma jamais teria este ensaio. Fechemos, pois, este capitulo, que se poderia chamar o da desesperança e morte dos “engenhos”, com estas estrophes commovedoras em que o velho pai de Natalia relata ao viandante o “delenda” merencório da sua “Esperança desesperançada”: «— A flor do cafezal, filha de Outubro, Reclamando a colheita, a rir-se agora, Já mudada se achava em fructo rubro. Naquelle mez a várzea se melhora Com a estação mais regrada e água da serra, Ao sol pompeando todo caule enflora; Viça o vesco faval, com o humor que encerra; Os grãos amojam nas espigas de ouro; Racha com as grossas tuberas a terra. Mas com que mãos colher tanto thesouro? As mãos Maio as levou, levando o escravo, Maio agora tornado sestro agouro. Meu mal, assim pensando, afflicto aggravo; Nas terras, nas lavouras em abandono Em desesperação os olhos cravo. Depois, apouco e pouco, um meio somno Me vem. Olho estas cousas com fastio, E deixo-as ir, como se vae sem dono Barco largado na tensão do rio.» (51)

Dahi por diante, a historia da “Serra-Acima” é a de um velho burgo abandonado, digno de figurar na galeria lobatiana das Oblivions e Itaócas, em que «toda a ligação com o mundo se resume no cordão umbilical do correio — magro estafeta bifurcado em ponteagudas éguas pisadas, em eterno ir e vir com duas malas postaes á garupa, murchas como figos seccos» (52). Assim foi que a conheci, quando, a 5 de Julho de 1924, pela primeira vez lá estive, tendo feito a viagem a cavalo, pela “Bocaina” e voltado, dias após, pela serra do “Quebra-Gamela”. Tenho viva, presente, real impressão da chegada, á noite, depois de uma longa caminhada, ao ar frio do planalto, que me impressionara desde o “Tope de Fita”. Ao fim da planície interminável, daquella chan formosa, que a viração dos começos de imverno varria docemente, á hora romântica do crepúsculo, vi apontarem, á beira do trilho, que a noite já mal permittia distinguir, os primeiros casebres, ranchinhos beira-ao-chão, que me delatavam a aproximação do histórico e vestuto povoado. E foi com indissimulável commoção que saltei na praça ampla, toda a crepitar em meio á noite negra, ao clarão das luminárias, emquanto no céu, alto e escuro, outras infinitas luminárias se accendiam, como para uma recepção festiva aos viandantes retardatários. Via aquelle vasto largo, com a sua enorme igreja, cujo adro é feito de pedrinhas do Coxipó, que lenda affirma terem sido conduzidas pelos índios, sob direção dos “padres da missão”, e, na calada da noite morta, depois que todos se retiraram, eu me pus a evocar-lhe os dias antigos da Aldeia Velha, os dias mais recentes da Chapada de Guimarães, como núcleo radiador e centralizador dos “engenhos”, produzindo para abastecer a capital, a que os cargueiros e as tropas, em lotes de muares, tangidos aos suggestivos gritos dos arrieiros e ao toque das sinetas das “madrinhas”, levavam, seguidamente, cereaes, assucar, aguardente e outros artigos, para trocar pelas mercadorias “de fora”. Imaginava a Chapada ruidosa e festiva de outros tempos e, ao ver, da janella da sacristia onde fizera o meu pouso, as ultimas luminárias que se iam lentamente apagando, ao cantar dos gallos, núncio da madrugada próxima e bemvinda, minha imaginação se desenhava, num expressivo symbolismo, a lembrança da Chapada de hoje, moribunda e decadente, como aquellas luzes que ha pouco viramos estrellejando a linda noite serrana . . .

A zona assucareira se deslocou do planalto para a beira-rio. Já em 1884, antes da abolição, o relatório do Barão de Batovy accusava a existência, nas margens do Cuyabá, de dois engenhos a vapor, aperfeiçoados — o de Joaquim José Paes de Barros (Conceição), que foi o iniciador dessa industria no Rio Abaixo, e o Cesário Corrêa da Costa (Flechas) (53). Em 1885, organizava-se a “Companhia Engenho Central de Cuyabá”, «com o fim de estabelecer uma fabrica de assucar e aguardente, empregando dentre os apparelhos e processos mais aperfeiçoados, os mais convenientes . . .» (54). É a machina, pouco a pouco, substituindo o homem, na evolução natural da industria. As zonas do Rio Abaixo e Rio Acima offereciam melhores possibilidades de transporte, graças á natural condição, que faz dos rios «routes qui marchent» no conceito de Pascal.

Por outro lado, a navegação do Prata, depois da guerra, franca e desimpedida, diminuiu o transito pelo sertão, pouco a pouco abandonado devido ás correrias dos índios. E os últimos governos da monarchia, bem como as primeiras administrações republicanas, em Matto Grosso, viram, com um indifferentismo chocante, consumar-se a obra do declínio e da quase extinção da Chapada (55). No governo do dr. Antonio Corrêa da Costa, em 1896, cogitou-se na «abertura de uma estrada de fácil transito para essa Capital» e ao mesmo tempo na «entrada de immigrantes ou colonos, com vista de localisal-os em serra acima» (56).

O lamentável desfecho que encerrou, ainda a meio caminho, a administração do dr. Corrêa, não permittiu a execução dos seus planos e ainda uma vez ficou a Chapada á espera de um soccorro que lhe impedisse a completa ruína e o total abandono.

No governo do cel. Antonio Cesário uma leva de immigrantes nacionaes, cearenses na sua mor-parte, localizou-se na “Ponte Alta”, formando uma esperançosa colônia, de que subsistem algumas famílias, radicadas definitivamente na Serra. Essa tentativa, porem, de colonização, se destinava ao mesmo mallogro a que, em ponto maior, havia de condemnar-se a introducção de immigrantes estrangeiros, na maioria rumenos, scheco-slovacos e alemães, que, em 1927, o governo Mario Corrêa pretendeu localizar na colônia do “Cajurú”. Bellos sonhos, por sem duvida, mas, como sonhos, destituídos de base real que os tornasse exeqüíveis!

Assim foi a malfadada cidade serrana, na beira da escarpa que desce entre o Capão Secco e o Apertado, com um panorama de duma belleza estonteante e que deslumbra o próprio europeu . . . mas que, a não ser isso, condição nenhuma possuía para se tornar um centro habitável. A administração que deveria notabilizar-se pelo seu carinho para com a zona chapadense foi a do cel. Pedro Celestino, que, com ser filho do “Bom Jardim”, districto da Serra-Acima, nas duas vezes que governou o Estado, em 1908 – 1911 e em, 1922 – 1925, encarou resolutamente e resolveu com efficiencia problemas importantes de viação que interessavam á Chapada. No primeiro governo de Pedro Celestino, sob a direcção do engenheiro civil Virgilio Alves Corrêa Filho, foi reconstruída a estrada da Boacina, que, atravessando o Coxipó, no Juru-Mirim, segue, depois de transpor o Aricásinho, rumo á serra, que começa a galgar desde as chamadas lavras do “Médico”.

É a velha estrada reúna da Serra, a de maior trafego, por onde, annos a fio, se escoaram tantas riquezas e se intercambiaram tantos productos agrícolas e fabris. Os trabalhos de reconstruccão, cujo relatório traz data de 18 de outubro de 1910, foram levados a effeito dentro do primeiro período governativo de cel. Pedro Celestino, a quem, cerca de um deccenio após, caberia pela segunda vez, novamente á testa da administração, realizar a grandiosa obra da rodovia Cuyabá — Chapada, pela estrada do “Portão do Inferno”. A 13 de maio de 1924, dando conta a Assembléa Legislativa dos emprehendimentos do seu governo, dizia haver determinado os necessários estudos, dos quaes resultaria um percurso de 70 kms. a vencer, com um orçamento calculado em 350:000§000 (57). Um anno depois a 13 de maio de 1925, o dr. Estevão Alves Corrêa, que o succedera no governo, podia annunciar na sua Mensagem a construcção de «mais de 50 kilometros, incluindo 14 na secção da subida do planalto» (58). E ao transmittir o governo, a 22 de janeiro de 1926, ao dr, Mario Corrêa da Costa, o dr. Estevão Corrêa dava conta de achar-se construída a estrada até 120 kilometros alem de Rondonópolis, em demanda de Santa Rita do Araguaya (59). Em novembro de 1925 a estrada de rodagem já era francamente transitada e, nessa occasião, ti- (57) Mensagem de 13 de Maio de 1924, pag.59. (58)

Mensagem de 13 de Maio de 1925, pag.52. (59) A synthese de um governo, págs. 21 e 27. JOSÉ DE MESQUITA 28 vê opportunidade de percorrel-a em optimas condições de trafego A instalação da Usina hydro-electrica do Rio da Casca, no governo Mario Corrêa, veio, por outro lado, despertar a attenção e interesse pela zona Planaltina, que, assim, nas administrações que se seguiram, continuou a merecer certo carinho e cuidado por parte dos governos. Ha muito, entretanto, ainda a fazer em prol dessa zona da “SerraAcima”, que merece dos contemporâneos, tão egoístas e indifferentes, pelo menos a respeitosa estima e o carinho filial que nos desperta a presença de uma velha avozinha a nos evocar os bons e saudosos tempos de antanho. Que essa estima e esse carinho lhe não faltem por parte das futuras administrações de nossa terá, bem orientadas pelo desejo de engrandecer este torrão querido, valorizando-lhe os productos, explorando-lhe os inexgottaveis vêeiros de riquezas, para que, olhos fitos no porvir distante, jamais lhes deslembre o passado glorioso e evocativo, de que a Chapada constitue uma das paginas mais bellas e immorredouras . . .

(Da série “GENTE E COUSAS DE ANTANHO”) (Cuiabá, Nov.º 1931 a Janeiro 1932)

(1) Vida social no Nordeste, no Estado de Pernambuco, edição do Centenário, pag. 75

(2) Rev. do I.H. e G.B., volume IV, 497. 

(3) Vol. I, pag. 271.

(4) MELGAÇO — Apontamentos chronologicos, na Rev. M. Grosso, anno I, n.6, pag. 183; V. CORREA FILHO, Á cata de ouro e diamante, pag. 22.

(5) F. IGNACIO FERREIRA, Diccionario Geoagraphico das Minas do Brasil, pag. 722.

(6) Nota da Rev. I.H. e G. Brasileiro, vol XLVII, 483, nos apontamentos para o Diccionario, de Leverger.

(7) Officio do Barão de Lages. Rev. I.H. e G.B. , XX, pag. 389.

(8) Ver. I. H. e G. B., XXXVII

(9) Doc. Históricos, XLIV, 335. 

(10) O Matto Grosso, de 17 de Janeiro de 1926

(11) Escriptura no L. VI, 27v do 2. Cartório. 

(12) Ver, nesta serie, o folhetim, XII “Um fervoroso e devo Ministro”.

(13) Annaes da Biblioteca Nacional, III, 269. 

(14) Cultura e opulência do Brasil, edição de 1923.

(15) Oliveira Vianna — Evolução do povo brasileiro, 63.

(16) Itinerário da viagem de Cuyabá a São Paulo, pag.14.

(17) A. Bueno — Ob. Cit. nota 2ª. Pag. 59.

(18) Ob. Cit. Nota 4ª. pag.67.

(19) Estrada de ferro de Cuyabá á Lagoinha, Rio, 1876.

(20) Memória justificativa dos trabalhos de que foi encarregado — Rio — 1880, pag.57.

(21) Datas Mattogrossenses, I, 357.

(22) Ensaios Brasileiros, 162.

(23) Viçosa de Alagoas, págs. 215 e seguintes.

(24) Festejou-se, faz pouco, o centenário do engenho d’água, do Norte, sendo celebrado como o «grande instrumento do progresso brasileiro».

(25) MATTO-GROSSO, 325. (26) Viagem ao redor do Brasil, I, 149, nota A.

(27) Ver. do I. H. M. Grosso, III, 76 nota H.

(28) Nobiliarchia Paulistana, 459 e Genealogia Paulistana, III, 544.

(29) Annaes do Senado da Câmara, anno de 1727.

(30) Memórias Chronologicas, R. I. H. e Goegraphico, XIII,133.

(31) Patentes, provisões e sesmarias, J. B. Campos Aguirre, págs 39 e seguintes.

(33) Somente as victimas das “bexigas” cujo óbito foi registado pelo então vigário P. Caldas, attingem a 124, de Setembro a Dezembro de 1867. Ver, nesta serie “O anno das bexigas”, II, que traz minudente dados estatísticos sobre a extensão do flagello que assolou a Província de Matto-Grosso. 

(34) Pimenta Bueno, op. cit. 75. 

(35) V. Correa Filho dá-lhe essa graphia no seu “Relatório sobre o melhoramento da Estrada da Chapada”, 1910, e posto já tenha visto com a forma Russa prefiro aquella, pois penso derivar de «ruça» que, na Serra, traz o significado de neblina, cerração muito forte, phenomeno athmosferico ali commum e que dá á paisagem um ar «ruço», grisalho. 

(37) Matto Grosso, 333.

(38) Memória histórica sobre os indígenas da província de Matto Grosso, Rio, 1887, págs. 19 e 20.

(39) N. 23, de 4 de Outubro de 1857.

(40) N. 98, de 20 de Março de 1859.

(41) N. 99, de 27 de Março de 1859.

(42) A Província de Matto Grosso, ns. 40 e 41, de 5 e 12 de Outubro de 1879.

(43) Edição de 22 de Agosto de 1879.

(44) Numero de 27 de Fevereiro de 1881.

(45) N. 6, de 26 de Fevereiro de 1882.

(46) N. 6, de 17 de Fevereiro de 1884.

(47) N. 123, de 3 de Julho de 1886.

(48) Archivo Ecclesiástico, 2º livro de óbitos, 1854—1878. (49) Ob. Cit. págs. 112 e 113.

(49) Ob. Cit. págs. 112 e 113.

(50) Contrastes e confrontos, 6ª. Ed. Pag. 218.

(51) Poesias, III, 274.

(52) M. Lobato — Cidades Mortas, pag. 10.

(53) Relatório de 1 de Outubro de 1884. Fala também num engenho de Carcano & Colombo, em Corumbá.

(54) O Espectador, de 22 de Janeiro de 1885.

(55) O projeto de estrada de ferro do Calaça foi a ultima tentativa séria em favor da Chapada, levada a effeito na administração monarchica, e infelizmente inefficás.

(56) O Republicano, de 16 de Abril de 1896.
Nota de pesquisa: “Grandeza e Decadência de Serra-Acima”, consta como verbete, nos seguintes livros de referência:  Revista portuguesa de história; Volume 33, Part 1, Universidade de Coimbra. Instituto de Estudos Históricos Dr. Antônio Vasconcelos, 1999, pág. 329;  Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal; Volume 2, Gilberto Freyre, J. Olympio, 1978, pág. 398;  Intérpretes do Brasil, Volume 2, Silviano Santiago, Editora Nova Aguilar, 2000, pág. 575.