O “MÉDICO-CHEFE” DE CHAPADA
No mês de maio de 1941 dirigia-se pelo Pacífico para a América Central um grande navio de passageiros. Na popa tremulava em cores vivas a bandeira nacional do país do Sol Nascente, o ponto vermelho sobre o fundo branco brilhante. Era o Nana-Maru, o último navio japonês a cruzar as reclusas do canal do Panamá antes do rompimento da guerra entre o Japão e os Estados Unidos, assim mesmo muito vigiado e vasculhado.
Quando o navio chegou a Caribe, perto da ilha de Trinidad, e em águas inglesas, repentinamente apagaram-se todas as luzes durante a noite e também emudeceu o transmissor do navio. O que teria acontecido? Por que de repente essa navegação no escuro? Mas o capitão do navio sabia o que estava fazendo. Ele queria levar os passageiros até o destino deles. Também os quatro alemães, cuja pátria estava em guerra com os ingleses.
Por meio desse estratagema, conseguiu o comandante do navio atingir águas brasileiras sem ser molestado. Com isso estava franqueado o caminho até o Rio de Janeiro, antiga capital do Brasil. Aí os quatro alemães pisaram pela primeira vez em solo do maior país da América do Sul. Entre eles se achava também o irmão franciscano, natural de Frankfurt-Hochst, Osvaldo Braun.
Frei Osvaldo, como se tornou conhecido desde então, e também seus três outros confrades não estavam fugindo de um trabalho missionário muito difícil no Japão para uma mais fácil. O caso era outro. Frei Osvaldo tinha sido até então um missionário bem sucedido e múltiplas atividades em Hokkaido, na missão japonesa confiada à Província Franciscana da Turíngia (Alemanha). Por oito anos trabalhara na missão como cozinheiro do bispo Wenceslau Kinold. Como serralheiro diplomado e desenhista técnico também tinha dado sua colaboração profissional no ramo da construção. Por fim foi até professor de alemão em um ginásio japonês. Sempre de novo surpreendia ele os missionários e os japoneses por tudo aquilo que conseguia realizar. Alguns até achavam que não havia nada que ele não soubesse fazer. Mas a legislação referente aos estrangeiros ia restringindo cada vez mais o campo dessa múltipla atividade, até que não lhe restava outro recurso senão recomeçar tudo de novo em outra terra de missão. No Brasil devia ele encontrar o que foi propriamente o trabalho de sua vida, e isso em um campo com que ninguém contava: o serviço aos doentes.
“Ao médico-chefe Dr. Osvaldo Braun, Chapada dos Guimarães, Estado de Mato Grosso.” Não era raro encontrar-se tal endereço nas cartas que Frei Osvaldo recebia. Em Chapada, bem no interior do Brasil, encontrou nosso “médico-chefe”, há mais de dois decênios, seu lugar de trabalho abençoado e proveitoso. E quem o visse aí trabalhando com o jaleco branco de enfermeiro, rosto regular e olhar inteligente, de porte baixo, com seus amplos movimentos e em sua apresentação segura, de fato certamente poderia pensar que se encontrava diante de um médico-chefe, mesmo sabendo que ele não tinha nenhum diploma universitário em sua pasta.
AQUILO SE ESPALHOU
Foi assim que começou. Em um pequeno armário de madeira guardava ele uns poucos remédios, como purgativos, vermífugos, comprimidos de sais de ferro e de aspirina. Esse armário ficava na portaria da nova missão, em um dos cômodos laterais tão característicos das igrejas coloniais brasileiras. Frei Osvaldo gostava de contar com gestos e uma dose de humor como se tornara conhecido por seu primeiro tratamento: “Quando se ficou sabendo que na portaria do convento se tinha pílula contra dor de cabeça, e contra a barriga inchada das crianças – repleta de vermes – se dava um vermífugo, foi aí que tudo começou. Era uma menina, que, depois de tomar cinco pilulazinhas de um vermífugo, expeliu 120 lombrigas. A mãe da menina contou os vermes inquietos e chamou toda a vizinhança para ver o efeito espetacular. Tive ainda de cuidar da menina por mais alguns dias, mas a coisa se espalhou, e começaram a vir muitos pacientes”. Em breve já era pequena a modesta sala da portaria para conter o número das pessoas que procuravam ajuda. Até nos lugares mais afastados do mato havia chegado a fama dele, e as pessoas vinham de longe a pé ou a cavalo. Muitos desses doentes precisavam de um verdadeiro tratamento prolongado, mas não havia lugar disponível onde pudessem ser colocadas algumas camas. Frei Osvaldo decidiu-se então a construir uma casa própria para sua farmácia e para seus doentes. Mas ele nem sequer suspeitava que seria apenas um começo.
A ÚLTIMA ESPERANÇA PARA MUITOS
Hoje esta pequena primeira casa tem aparência muito modesta ao lado das acomodações cheias de luz e acolhedoras do novo hospital construído nesse intervalo de tempo. O número dos tratamentos e das visitas domiciliares cresce de ano para ano. Sempre de novo o “irmão doutor” é chamado para doentes, até para os que moram também muito longe no sertão. Ele mesmo procura também os povoados maiores, onde sua cabana fica dias e dias rodeada de gente, até que ele acabe de dar suas consultas. Essas consultas de modo algum se restringem a remédios contra anemia ou contra as verminoses devastadoras. O Irmão Frei Osvaldo ultrapassa a si mesmo, e tornou-se um pioneiro da saúde popular. Ele ensina com seu senso prático os princípios fundamentais da higiene. Ele mostra ao povo como construir de modo melhor e mais saudável seus casebres. Ele ensina a criar uma pequena horta e um pomar. Mostra ao povo as ervas medicinais e ensina a curar-se a si mesmo. E o que é muito importante, as pessoas aceitam a instrução e advertências de “seu doutor”.
Desse modo Frei Osvaldo já fez muito bem nessa região montanhosa, até há poucos anos completamente isolada e sem jamais ter visto um médico ou uma enfermeira. Desde que a estrada de rodagem estabeleceu a ligação com o grande mundo, também não faltam pacientes da baixada do pantanal. De lugares que distam até 250 km vêm, de automóvel ou de caminhão de carga, muitos doentes que não conseguiram cuidar-se com o auxílio dos médicos, e agora põem sua última grande esperança em Frei Osvaldo. Assim se amplia sempre mais o campo de trabalho de nosso “médico chefe”.
Donde tem ele todo esse conhecimento de medicina? Para os auxílios mais simples deve ele ter seu saber a um bom curso de enfermagem que ele havia feito na Alemanha. Depois pela experiência de muitos anos conseguiu ele penetrar no saber que distingue a doença do modo sadio de viver. Mas desde a juventude teve ele grande interesse pelo corpo e pela alma do homem, e procurou aprofundar-se pelo estudo incansável de obras de medicina, d modo que adquiriu aos poucos grande conhecimento da medicina, o que até médicos especialistas reconhecem plenamente.
FREI OSVALDO É BOM
No ano passado Frei Osvaldo teve uma grande alegria. Dos fundos da coleta quaresmal alemã “Misereor” foi-lhe concedida a importância de 30.000 DM para o prosseguimento das obras do hospital ainda inacabado. Teve grande satisfação em saber que como missionário franciscano via agora o trabalho de sua vida reconhecido por sua pátria por meio dessa vultosa doação; e assim eram compensados todos os sacrifícios e lutas durante esses anos de sua vida no Mato grosso.
Aconteceu em uma viagem pelo interior de nossa paróquia. Nas visitas às casas encontrei em um casebre coberto de palha uma velhinha. Ela contou a história dos filhos e de suas doenças. Muito naturalmente a conversa caiu em Frei Osvaldo e em tudo que ele já fez para ela e para a sua família. Após uma pequena pausa disse a velhinha de rosto rugoso e com olhar de respeito e veneração: “Frei Osvaldo é bom!”.
Por meio destas palavras, ditas com plena convicção, pela primeira vez compreendi qual a importância de nosso confrade entendido em medicina para o nosso município. Para muitas pessoas ele não é apenas quem socorre na doença e na necessidade, ele é para elas um sustentáculo em que se apoiam para se reerguer de novo, com a convicção de que a vida, mesmo na pobreza e na penúria, tem um sentido. Constitui isto como que um capital inexaurível de confiança que Frei Osvaldo adquiriu nestes dois decênios. Mas não se trata de uma confiança sem fundamento e solidez que um charlatão talvez tivesse despertado por esta ou aquela façanha bem realizada. As pessoas se sentem impressionadas pelos muitos encontros pessoais com Frei Osvaldo: percebem sempre a mesma amabilidade, quase sempre com um gracejo nos lábios. Notam sempre a compreensão séria e solícita para as suas dores e cuidados. Ele faz sempre tudo o que está em suas forças a cada um que vem a ele.
Para muitas dessas pessoas simples, com sua fé compacta e sem complicações, tem Frei Osvaldo uma importância profunda. Para elas ele é simplesmente como uma encarnação da própria bondade de Deus, que atua entre elas dispensando benefícios e bênçãos.
E A JUVENTUDE ACEITA A OBRA DELE?
Deste modo a imagem de Frei Osvaldo ultrapassa a moldura comum de sua vida de religioso a serviço da missão, e a atuação dele nos territórios missionários de dois continentes é apenas um sinal da amplidão e grandeza da alma com que ele – como que naturalmente – coloca toda a sua vida e todas as suas forças diariamente a serviço dos outros de maneira despretensiosa.
Mas nosso Frei Osvaldo já desgastou suas melhores forças. Em poucos anos já não poderá dar conta sozinho de sua grande tarefa. Será que o exemplo dele não será bastante luminoso para servir de ideal a uma juventude à procura de algo para vida? Uma juventude em Dortmund ou Frankfurt, em Munchen ou em Hamburgo, em Colônia ou em Hannover? Uma juventude que já mostra tanta compreensão para seus irmãos pretos e morenos na imensidão do mundo? E este é também o grande interesse de Frei Osvaldo – que outros encontrem o caminho que ele trilhou com tanta segurança.
Frei Osvaldo Braun, O. F. M.
Nasceu em 23-12-1906 em Höchst, perto de Frankfurt sobre o Meno (Alemanha). Em 1929 entrou na Ordem Franciscana, em Frauenberg (Monte de Nossa Senhora), Fulda; em 1941 veio para o Brasil, para a missão do Mato Grosso; desde 1942 atuou em Chapada; em 08-09-1969 foi ordenado diácono por D. Vunibaldo Talleur; morreu em 08-01-1978 em Fulda (Alemanha).